lunes, 1 de abril de 2013

O GUARDADOR DE REBANHOS (fragmento)

                                    V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
e sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso e fechar os olhos
e não pensar. É correr as cortinas
de minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
começa a não saber o que é o sol
e a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
e já não pode pensar em nada,
porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
de todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
e por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas arvores?
A de serem verdes de copadas e de terem ramos
e a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar
a nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
que é a de não saber para que vivem
nem saber que o não sabem?

"Constitução íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
quando começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
é acresentado, como pensar na saúde
ou levar um copo á àgua das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
é elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
sem dúvida que veria falar comigo
e entraria pela minha porta dentro
dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
de quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
não compreende quem fala delas
com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
e os montes e o sol e o luar,
então acredito nele,
então acredito nele a toda hora,
e a minha vida é toda uma oração e uma missa,
e uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
e os montes e o luar e o sol,
para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
porque, se ele se fez, para eu o ver
sol e luar e flores e árvores e montes,
se ele me aparece como sendo árvores e montes
e luar e sol e flores,
é que ele quer que eu o conheça
como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe
(qué mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
como quem abre os olhos e vê,
e chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
e amo-o sem pensar nele,
e penso vendo e ouvindo,
e ando com ele a toda hora.

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa): O guardador de rebanhos (1914)

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